Sementes, pessoas e uma longa jornada: por dentro da maior iniciativa de restauração do Cerrado brasileiro

Edital Corredores de Biodiversidade contempla 12 projetos que restaurarão 2.700 hectares nos próximos quatro anos, algo inédito no Cerrado brasileiro. Foco na inclusão social é um dos pilares

“O Cerrado é milagre (e também é pedaço do Planeta que desaparece) […] Quem vai pagar a conta de tanta destruição? ‘Tudo bem, daqui a 100 anos estaremos todos mortos’, disse alguém. Certo, estaremos todos mortos. Mas nossos netos não”. Os versos do poeta cuiabano Nikolaus Behr dão o tom da preocupação sobre a preservação do bioma brasileiro que, segundo a literatura acadêmica, teria começado a ser formar há pelo menos 65 milhões de anos, quando continentes e oceanos adquiririam sua atual configuração — embora as imensas rochas que dariam origem às famosas chapadas tenham se formado há mais de 1 bilhão de anos.

Praticamente intocado por eras, o Cerrado era inicialmente visto como um território bruto e perigoso na história colonial do Brasil, sendo gradualmente ocupado desde a descoberta do ouro no século XVII. Com o tempo, a exploração da terra se intensificou, especialmente a criação de gado, e na década de 1930, a Marcha para o Oeste, sob o governo Getúlio Vargas, decidida a desenvolver e integrar as regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil, acelerou a ocupação do interior. E sua destruição.

Entre 1985 e 2023, o bioma perdeu 38 milhões de hectares, uma extensão superior ao tamanho do Estado de Goiás, segundo dados do Mapbiomas. Essa devastação reduziu em 27% sua vegetação original, que hoje se vê com quase metade de área (48,3%) alterada pelas mãos humanas. A outra metade, ainda intacta, ocupa 101 milhões de hectares, o que equivale a 8% da vegetação nativa do Brasil. Durante esse período, a pecuária e a produção agrícola, principalmente commodities, se expandiram de maneira expressiva, com aumentos de 62% e 529%, respectivamente.

Atualmente, as plantações ocupam 26 milhões de hectares do Cerrado, com 75% destinados à soja, que representa quase metade da produção brasileira do grão. Porém, a exploração excessiva tem gerado sérios impactos ambientais: erosão e empobrecimento do solo, perda de espécies da flora nativa para o desmatamento, expansão de espécies invasoras, queimadas irresponsáveis e diminuição da qualidade e da quantidade de águas – é no Cerrado que estão as nascentes de grandes bacias hidrográficas do Brasil e da América do Sul – além da fragmentação dos ecossistemas, que afeta a resiliência do bioma e deixam as espécies ainda mais vulneráveis.

Vista aérea de vegetação nativa do Cerrado nativo ao redor de um campo agrícola em Formosa do Rio Preto, na Bahia — Foto: Getty Images
Vista aérea de vegetação nativa do Cerrado nativo ao redor de um campo agrícola em Formosa do Rio Preto, na Bahia — Foto: Getty Images

Diante dos desafios ambientais, iniciativas voltadas para restauração buscam reconectar áreas fragmentadas, promovendo a regeneração da fauna e flora nativas. O Edital Corredores de Biodiversidade, uma parceria entre o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO), o Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES) e a Petrobras, é um exemplo dessa abordagem, com 12 projetos que restaurarão 2.700 hectares nos próximos quatro anos, algo inédito no Cerrado brasileiro. Com um investimento total de R$ 58 milhões, o projeto visa a recuperação do solo, a escolha de espécies apropriadas e o engajamento das comunidades locais, com ações em cinco estados – Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais – e no Distrito Federal.

O Edital faz parte da iniciativa “Floresta Viva” lançada pelo BNDES em 2021, com o objetivo de promover investimentos em restauração ecológica nos biomas brasileiros, combinando recursos do BNDES e de instituições apoiadoras no modelo de financiamento de matchfunding. As instituições apoiadoras incluem empresas, fundações, associações privadas, pessoas jurídicas de direito público e entidades da administração pública indireta. O FUNBIO é o parceiro gestor da iniciativa, sendo responsável pela organização e condução dos processos de seleção, contratação, acompanhamento e monitoramento dos resultados dos projetos de restauração.

“O modelo de matchfunding serve como uma alavanca financeira, ampliando o alcance dos projetos ao atrair mais recursos e consolidando um ecossistema de parcerias para as ações de restauração e conservação”, explica Marcos Cardoso, chefe do Departamento de Meio Ambiente no BNDES. O Floresta Viva já lançou 8 editais com fomento estruturado na ponta, contemplando outros biomas. Este voltado para o Cerrado, em parceria com a Petrobras, é o maior em valor aportado.

“O Edital do Cerrado é parte de um esforço mais amplo da Petrobras para investir em soluções baseadas na natureza, com foco na conservação e restauração”, conta Ana Marcela Di Dea Bergamasco, gerente de Projetos Voluntários de SBN da Petrobras. Outra parceria da empresa com o BNDES dentro do “Floresta Viva” é o edital para recuperação de manguezais, que já tem oito projetos em andamento, desde de 2023.

Para o biólogo Rodolfo Cabral Marçal, gerente de projetos ambientais no FUNBIO, os projetos selecionados pelo edital vão ao encontro da urgente necessidade de corredores ecológicos no país, que facilitem a conectividade entre habitats e promovam a biodiversidade.

A fragmentação ambiental, causada por diversos problemas, faz com que as Unidades de Conservação fiquem isoladas. Precisamos criar habitats seguros para permitir o fluxo de espécies entre elas.

— Rodolfo Marçal, gerente de projetos ambientais no FUNBIO.

Segundo ele, os corredores são facilitadores do fluxo gênico, e não apenas para animais, mas também polinizadores e plantas. “Por exemplo, um polinizador pode visitar uma planta em um fragmento e, em seguida, polinizar outra planta em um fragmento diferente. Isso é fundamental para processos ecológicos e a dispersão de sementes, que são vitais para a regeneração e a saúde dos ecossistemas”, afirma.

Rodolfo Cabral Marçal, biólogo e coordenador de projetos do FUNBIO. — Foto:  Rede Kalunga de Comunicação
Rodolfo Cabral Marçal, biólogo e coordenador de projetos do FUNBIO. — Foto: Rede Kalunga de Comunicação

Viver para restaurar: pessoas no centro da restauração

Além de promover a restauração de áreas degradadas, o Edital “Corredores da Biodiversidade” pretende fortalecer as instituições e organizações comunitárias que já atuam nesse campo e permitir a troca de experiências e técnicas entre elas, promovendo, assim, um aprendizado coletivo. Nesse contexto, no início do mês de fevereiro, as 12 instituições selecionadas, especialistas e organizações apoiadoras se reuniram em Alto Paraíso-GO para trocar experiências, apresentar planos iniciais dos projetos e visitar áreas em restauração no Cerrado sob comando do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para adquirir mais conhecimento e estreitar relações.

Claudomiro, da Cerrado de Pé, e demais restauradores contempledos no Edital em visita técnica na Chapada dos Veadeiros. — Foto: Vitor Saraiva
Claudomiro, da Cerrado de Pé, e demais restauradores contempledos no Edital em visita técnica na Chapada dos Veadeiros. — Foto: Vitor Saraiva

Entre os projetos contemplados pelo edital estão iniciativas como a da Associação Nacional de Fortalecimento da Agrobiodiversidade (Agrobio), que busca fortalecer cadeias produtivas da biodiversidade no cerrado goiano. Marcelo Mendonça, professor da Universidade Federal de Goiás e coordenador da Agrobio, explica que o projeto vai restaurar 200 hectares de áreas, além de implantar indústrias para o fortalecimento das cadeias produtivas regionais no território quilombola Kalunga, nos municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás, além de comunidades e assentamentos nordeste do estado. Inclusão produtiva e geração de renda nas comunidades locais são, segundo ele, chaves para a sustentabilidade da restauração. “Não se trata de levar para eles, mas de construir com eles a partir dos saberes, dos fazeres, das experiências locais”, afirmou durante apresentação do projeto na UNB Cerrado.

A Angá (Associação para a Gestão Socioambiental do Triângulo Mineiro) utilizará seres vivos como bioindicadores no projeto “Canastra Viva: restaurando corredores para a biodiversidade”. O pato-mergulhão, considerado o embaixador das águas brasileiras, é uma das aves mais ameaçadas das Américas, sendo afetado pela poluição dos rios, projetos hidrelétricos e o assoreamento das águas. Por sua sensibilidade ambiental, a espécie funciona como um “termômetro” para a saúde dos ecossistemas aquáticos, vivendo apenas em águas limpas. Além disso, é uma “espécie guarda-chuva”, cuja proteção beneficia outras espécies do Cerrado.

Pato-Mergulhão (Mergus octosetaceus), ave criticamente ameaçada, atua como bioindicador ambiental. — Foto: Sávio Freire Bruno/WikimediaCommons
Pato-Mergulhão (Mergus octosetaceus), ave criticamente ameaçada, atua como bioindicador ambiental. — Foto: Sávio Freire Bruno/WikimediaCommons

“Monitorar o aumento da população do pato mergulhão nessas áreas vai nos ajudar a avaliar o sucesso do projeto de restauração ambiental”, diz Poliana Duarte, bióloga da Angá, que visa formar um corredor ecológico entre o Chapadão da Babilônia e o Chapadão da Canastra, promovendo a regeneração ambiental, especialmente ao longo do rio Ribeirão das Posses. Leonardo Gomes Neves, coordenador do projeto, também considera monitorar primatas locais, como o macaco-prego e o bugio. “Os primatas dependem da área florestal para se alimentar, então sua presença é um bom indicador de que a área está melhorando. Além disso, eles são excelentes dispersores de sementes; onde há primatas, há floresta sendo plantada”, afirma.

Representantes das organizações contempladas no edital Corredores da Biodiversidade em encontro no início de fevereiro na UNB Cerrado. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta
Representantes das organizações contempladas no edital Corredores da Biodiversidade em encontro no início de fevereiro na UNB Cerrado. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta

Atento à conectividade entre biomas, o Edital Corredores da Biodiversidade também contemplou projetos de restauração no Pantanal. Entre eles está o Instituto Gaia Pantanal, que propõe uma restauração socioparticipativa no corredor do Jauru, um trecho do rio de mesmo nome no Mato Grosso, que vai desde a foz do rio até a ilha do Tucum, pegando Cerrado e Pantanal. Solange Ikea Castrillon, coordenadora do Instituto, destaca a importância do corredor para manter a umidade no Pantanal. “O Cerrado funciona como uma área de recarga para o Pantanal. Sem essa recarga, não conseguimos manter a umidade e água necessárias para o Pantanal, que é fundamental para preservação da biodiversidade”, diz, ressaltando que a redução do volume de chuvas e as grandes erosões e incêndios têm se agravado.

Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso, Solange enfatiza a importância da parceria com a universidade para mobilizar a sociedade, implementar projetos de restauração e capacitar as comunidades, promovendo práticas de restauração e produção de mudas nativas, fortalecendo a conscientização ambiental e a cultura de regeneração. Os saberes tradicionais dos comunitários são igualmente chaves no processo. Uma parceria emblemática no Instituto Gaia é com Seu Zé Aparecido, que já plantou um milhão de mudas em mais de 120 nascentes na bacia hidrográfica do Jaú.

Instituto Gaia — Foto: Reprodução/Instagram
Instituto Gaia — Foto: Reprodução/Instagram

Nessa mesma lógica de conectividade, o Instituto Taquari Vivo vai, por meio do projeto “Caminhos das Nascentes”, atuar numa área crítica para conexão entre os biomas do Cerrado e do Pantanal. A bacia do Alto Taquari, com área de aproximadamente 80.000 km², é vital para a conexão entre os biomas do Cerrado e do Pantanal, sendo o Rio Taquari o principal responsável pela hidrologia da região. No entanto, a bacia enfrenta desafios como mudanças no uso do solo, alterações climáticas e degradação, o que impacta negativamente os leitos dos rios, a dinâmica das inundações e a biodiversidade local. Para agravar, a presença de mais de 5.000 moçorocas ativas, resultantes da erosão do solo, afeta a produtividade agrícola e a qualidade da água, tornando a bacia uma área crítica para ações de restauração e conservação.

Projeto "Caminhos das Nascentes", do Instituto Taquari Vivo, busca combater erosão e assoreamento que castigam Pantanal e Cerrado. — Foto: Divulgação
Projeto “Caminhos das Nascentes”, do Instituto Taquari Vivo, busca combater erosão e assoreamento que castigam Pantanal e Cerrado. — Foto: Divulgação

“A gente pretende reduzir esses processos erosivos através da recuperação ambiental e recuperação do solo por meio de terraceamento, bacias de contenção, curvas de nível e restauração de 378 hectares em duas unidades de conservação, o Parque Estadual das Nascentes do Rio Taquari, nos municípios de Costa Rica e Alcinópolis, no Mato Grosso do Sul, e no Monumento Natural Serra do Bom Jardim, em Alcinópolis”, diz Letícia Koutchin Reis, coordenadora do projeto. No processo, o projeto visa fortalecer a colaboração entre produtores rurais e órgãos ambientais, promover boas práticas de manejo por meio de workshops e materiais informativos sobre conservação do solo, adquirir 100.000 mudas nativas e mais de 8 toneladas de sementes para replantio, e estabelecer o “Espaço Floresta Viva” para apoiar estudos e pesquisas em conservação e turismo na região.

O caminho das sementes: da coleta à restauração

Sementes expostas no armazém da Cerrado de Pé. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta
Sementes expostas no armazém da Cerrado de Pé. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta

O Cerrado é caracterizado por uma diversidade de tipos de vegetação. Dessa forma, os projetos de restauração ecológica precisam abranger todos os estratos da paisagem do bioma, incorporando não apenas árvores, mas também arbustos, ervas e gramíneas. Criada há mais de duas décadas, a Rede de Sementes do Cerrado tem atuado para a aumentar a disponibilidade de sementes de plantas nativas, com o objetivo de promover a preservação e a valorização do bioma de forma socialmente inclusiva.

“Um dos nossos pilares é a restauração de base comunitária, onde as pessoas são protagonistas, coletando suas sementes e restaurando seus territórios. Onde tudo é feito e liderado por assentados na reforma agrária, por geraizeiros [comunidades de agricultores familiares], por quilombolas e agricultures solidários”, explica Natanna Hoorstmann.

Além do protagonismo comunitário, a Rede se estrutura em outros dois pilares principais: técnica adequada e processos de formação contínua para as comunidades. Capacitações são fornecidas em diversas áreas, como a restauração ecológica, gestão administrativa e financeira, e técnicas de coleta de sementes. Contemplada no Edital Corredores da Biodiversidade, Rede de Sementes vai restaurar áreas emquatro corredores de biodiversidade no Parque Estadual de Terra Ronca, Chapada dos Veadeiros, Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Serra do Espinhaço e a APA Peruaçu.

Segundo Natanna, o projeto pretende criar áreas de referência para a restauração produtiva em assentamentos, onde a vegetação nativa seja restaurada de forma a permitir a produção de alimentos e outros produtos de maneira sustentável. Exercendo sua missão, a Rede também fornecerá sementes para outros projetos de restauração contemplados no Edital.

Dezenas de sementes nativas do Cerrado: diversidade é chave para a paisagem do bioma. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta
Dezenas de sementes nativas do Cerrado: diversidade é chave para a paisagem do bioma. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta

“Coletar tantas sementes quanto estrelas do céu”

Entre as organizações e grupos que integram a rede coleta de sementes nativas está a Cerrado de Pé, associação de coletores de sementes da Chapada dos Veadeiros, fundada em 2009. Começou com uma pequena experiência de restauração e, com o tempo, cresceu para envolver 240 famílias e realizar a coleta de até 30 toneladas de sementes por ano. A ação surgiu em resposta aos incêndios que devastaram o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, e teve como foco inicial restauração das áreas queimadas. A associação também se fortaleceu com o apoio de parceiros como o Sebrae, que contribuíram para sua formalização em 2017.

“Não tem como a gente falar de conservação e de restauração sem envolver as comunidades”, afirma Claudomiro de Almeida Cortes, fundador e diretor de restauração da Cerrado de Pé. Ele ressalta o papel das mulheres, que são a maioria entre os coletores, e dos territórios tradicionais no trabalho da associação, que passou de uma ação local para uma atuação mais ampla, atingindo diversos municípios. Além da coleta e restauração, a associação trabalha no cultivo, plantio e armazenamento de sementes nativas.

Cintia Oliveira, presidente da Cerrado de Pé no armazém de sementes nativas. — Foto: Vitor Saraiva
Cintia Oliveira, presidente da Cerrado de Pé no armazém de sementes nativas. — Foto: Vitor Saraiva

Nossa meta é coletar e plantar sementes de cerrado na mesma quantidade de estrelas do céu”, sublinha Cíntia de Oliveira, presidente da associação.

— Cíntia de Oliveira Silva Carvalho, presidente da associação Cerrado de Pé.

Para Cíntia de Oliveira Silva Carvalho, presidente da associação Cerrado de Pé, coletar sementes nativas é vital não apenas para o presente, mas também para as futuras gerações. “Coletar, para mim, significa vida. Vida para a gente hoje. Vida para nossos filhos, netos e bisnetos amanhã, para a flora e fauna do Cerrado”. Ressalta ainda como a restauração do bioma é crucial para garantir a disponibilidade de água e a preservação do meio ambiente, especialmente diante do desmatamento e da degradação das nascentes. “Se a gente não cuidar, não teremos mais Cerrado”.

Teste de fogo e capins exóticos pelo caminho

Placa indicando área em processo de restauração no Parque. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta
Placa indicando área em processo de restauração no Parque. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta

Restaurar o Cerrado não é uma tarefa fácil. Por diversos fatores, tanto ecológicos quanto sociais e econômicos. A degradação do solo, que é ácido e pobre em nutrientes, e a conversão das áreas em monoculturas agrícolas complicam o processo. Além disso, a presença de espécies exóticas invasoras, como a dominante braquiária, dificulta a recuperação da vegetação nativa. A restauração exige altos investimentos e adaptação ao clima sazonal, com períodos secos intensos e efeitos cada vez mais intensos da emergência climática. Outro obstáculo é a resistência de proprietários rurais a realizar a restauração – só no Cerrado, há 38,6 milhões de hectares de áreas de pastagens degradadas, o que torna a restauração um desafio complexo e demorado.

Para entender um pouco mais esses desafios e aumentar a troca de expertises, o grupo de restauradores contemplados pelo edital “Corredores da Biodiversidade” saiu à campo. Em visita ao Parque Chapada dos Veadeiros, foi possível acompanhar algumas iniciativas de restauração do ICMBio em parceria com a Cerrado de Pé e com outras organizações de pesquisa que atuam na região.

Alexandre Bonessa Sampaio, coordenador do ICMBio, comemorou a iniciativa do edital. “É a realização de um sonho que a gente vem construindo desde lá de trás. Termos uma iniciativa dessa envergadura é uma grande oportunidade para focar na restauração ecológica do Cerrado, que não tem recebido o mesmo nível de atenção e recursos que a Amazônia”, comentou o engenheiro florestal chamado por muitos apenas de “Xandão” dada à vasta e generosa atuação no bioma.

O engenheiro florestal e coordenador do ICMBio Alexandre Sampaio ("Xandão") e Claudomiro, diretor de restauração da Cerrado de Pé. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta
O engenheiro florestal e coordenador do ICMBio Alexandre Sampaio (“Xandão”) e Claudomiro, diretor de restauração da Cerrado de Pé. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta

Os principais desafios enfrentados pelo ICMBio na implementação de projetos de restauração, segundo ele, incluem a falta de recursos orçamentários próprios, a complexidade fundiária que dificulta a regularização de terras, a dificuldade em lidar com a grande escala necessária para a restauração, problemas nas normativas e processos burocráticos que complicam a execução, além da necessidade de uma maior integração e coordenação entre instituições e parceiros.

Outro ponto crítico para o especialista, e que os projetos contemplados pelo Edital também buscam endereçar, é o engajamento contínuo das comunidades locais para garantir a continuidade dos projetos. Sampaio enfatiza que a verdadeira mudança na conservação ambiental vem do engajamento da sociedade, e que, ao incluir as pessoas no processo de restauração é possível gerar benefícios sociais e econômicos que ajudam a combater as causas profundas da degradação ambiental. Muitas das áreas em restauração dentro do Parque da Chapada dos Veadeiros contam com as mãos e os saberes de comunitários.

A restauração é uma ferramenta de conservação da sociobiodiversidade. É aí que a gente tem chance de mudança.

— Alexandre Sampaio (“Xandão”), engenheiro florestal e coordenador do ICMBio.

Visita técnica a áreas de restauração do ICMBio na Chapada dos Veadeiros: troca de experiência para auxiliar projetos do edital Corredores da Biodiversidade, da iniciativa "Floresta Viva". — Foto: Vitor Saraiva
Visita técnica a áreas de restauração do ICMBio na Chapada dos Veadeiros: troca de experiência para auxiliar projetos do edital Corredores da Biodiversidade, da iniciativa “Floresta Viva”. — Foto: Vitor Saraiva

Na visita técnica, foi possível acompanhar o processo de restauração de uma área de vegetação nativa que foi alterada, inicialmente utilizada para cultivo de arroz e pastagem com capins exóticos, como a braquiária (Brachiaria decumbens). A vegetação original da região era formada por cerrados mais densos nas encostas e campos úmidos, com uma flora diversificada. O processo de restauração capitaneado por Claudomiro, da Cerrado de Pé, começou com o controle da vegetação exótica, usando fogo e gradeamento para preparar o solo. Em seguida, foi aplicada uma niveladora para triturar os torrões de palha e raízes, visando destruir a onipresente braquiária e preparar o solo para o plantio.

Após dois anos de preparação, o solo foi tratado com herbicidas para eliminar o banco de sementes da braquiária, que pode persistir por anos. O plantio foi feito em 2021, com uma mistura de sementes de capim e arbustos, com algumas árvores. Embora o projeto tenha obtido bons resultados em apenas dois anos, o processo de restauração requer um período mais longo, de pelo menos 5 anos. A vegetação nativa está voltando, mas a área ainda enfrenta desafios, como a competição com gramíneas invasoras.

A situação do solo, alterada pela calagem – processo de aplicação de calcário no solo, com o objetivo de corrigir sua acidez – e presença das gramas exóticas, demandam um manejo contínuo. Em outras áreas do Parque é possível avistar áreas de restauração mais maduras, com 11 anos, por exemplo, bem avançados e com fitofisionomia diversas. Em muitas delas, foram utilizadas também plantas nativas no combate às invasoras. É caso do “amargoso”, que embora não seja uma solução definitiva, atrapalha o crescimento da braquiária.

Nativa da África, a braquiária foi trazida ao Brasil nos anos 1960 e modificada pela Embrapa para servir de pastagem. Além de reduzir a biodiversidade e dificultar o crescimento das nativas, essas plantas são altamente regenerativas, difíceis de controlar e resistentes a incêndios, que estão cada vez mais frequentes com a alta do termômetro. “As áreas queimadas em anos consecutivos (2017, 2019, 2020, 2021) enfrentam um ciclo de degradação, onde as matas, especialmente as úmidas, são invadidas por espécies exóticas invasoras. Isso cria um sistema de retroalimentação, onde o fogo e as invasões se intensificam mutuamente, dificultando a recuperação das áreas”, contou Nayara Stacheski, analista ambiental e chefe do Parque Nacional.

Parque Nacional Chapada dos Veadeiros: parque tem cerca de 300 hectares de área em restauração. — Foto: Tales Emanuel
Parque Nacional Chapada dos Veadeiros: parque tem cerca de 300 hectares de área em restauração. — Foto: Tales Emanuel

Mas o balanço geral, segundo ela tem sido positivo. Atualmente, há cerca de 300 hectares em restauração no parque. “Saímos de um crença de que era impossível restaurar Cerrado”, celebra. Durante o encontro com os restauradores contemplados no edital, o uso do fogo na restauração também foi abordado como uma estratégia importante, mas que deve ser manejada com cuidado. O fogo, inclusive, desempenha papel importante na germinação de sementes no Cerrado, que dependem dele para sair do estado de “dormência”. Implementar estratégias de manejo do fogo, incluindo treinamento de equipes e planejamento cuidadoso para minimizar o risco de incêndios em áreas vulneráveis (as degradadas com excesso de capim, por exemplo), e que comprometam os esforços de restauração é chave nesse processo.

Transbordando de experiências na Chapada, os projetos aprovados no edital Corredores da Biodiversidade, agora terão um período de planejamento de seis meses, durante o qual deverão elaborar detalhadamente seus planos de ação e enviar para aprovação. A expectativa é que, a partir do início da estação chuvosa, em outubro ou novembro, as atividades de plantio e semeadura comecem. O cronograma prevê dois anos para a implementação das ações, seguidos por dois anos adicionais para manutenção e monitoramento das áreas restauradas. Durante esse período, haverá encontros anuais para avaliar o progresso dos projetos e discutir os resultados.

Rodolfo Marçal, coordenador da iniciativa no FUNBIO, lembra que a restauração é um compromisso com o futuro, onde cada semente plantada é uma esperança renovada para a biodiversidade e para as próximas gerações, mas é preciso dar urgência à ação. “Estamos trocando a roda enquanto o carro está pegando fogo”, compara. Em 2024, o bioma perdeu 9,7 milhões de hectares em queimadas, sendo 85% (8,2 milhões de hectares) em vegetação nativa, um aumento de 47% em relação à média dos últimos 6 anos. Com sua história de milhões de anos, o Cerrado não é apenas um legado do passado, mas um tesouro do presente que exige vigilância constante e compromisso coletivo para que, como bradam os versos do poeta, não se perca para sempre.

Informações: Um Só Planeta.

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